Choki Motobu (ou Motobu Choki) é considerado pelos estudiosos do Karate, com um dos maiores lutadores de Okinawa de todos os tempos. Ele realmente foi um temido lutador no sentido real da palavra, um lutador de rua no sentido literal.
Motobu foi instruído pelos antigos mestres da principal ilha do reino de
Ryukyu que aprenderam, por sua vez, com os mestres chineses nas suas viagens de
intercâmbio à China Continental, que lhes repassaram os ensinamentos
dos principais estilos de Kung Fu (fundados no Templo de Shaolin)
posteriormente adaptados e modificados ao modo de vida dos praticantes de
Okinawa.
O difícil e explosivo temperamento de Choki Motobu o remetia diretamente
para o combate, deixando em segundo plano os treinamentos enfadonhos (para ele)
de simulações de lutas ou das formas ou "katas", característicos do
cronograma de ensino do "To De" ou da "Mão Chinesa".
Ele certamente foi o mais respeitado e temido mestre de Karate de
Okinawa (e posteriormente do Japão) na sua geração.
A Origem do Lendário Mestre de Okinawa - Choki Motobu nasceu em 05 de abril de 1870, na aldeia de Akahira, próximo à cidade de Shuri, na ilha de Okinawa, que por sua vez fazia parte do arquipélago que formava o antigo reino de Ryukyu.
Choki Motobu veio de uma família aristocrata que eram guardiões
praticantes de uma peculiar modalidade de luta chamada "Gotende"
(arte semelhante ao moderno Aikidô) ou "Motobu Udon Ti", restrita
somente aos palacianos. Devido ao seu difícil temperamento e impaciência, Choki
Motobu foi impedido de continuar na prática desta arte marcial restrita aos
nobres.
Choki tinha um irmão mais velho, Choyu Motobu (1857/1928), dono um
temperamento mais maleável e comportamento mais condizente com sua origem
aristocrática, além de ser também um aplicado praticante de artes marciais.
Choyu por ser o mais velho e o primeiro herdeiro da arte do Motubu Udon Ti,
recebeu a educação e formação que Choki não obteve, e isso provavelmente pode
ter influenciado na personalidade de Choki Motobu que se tornou mais
áspero e briguento. O terceiro irmão se chamava Choshin Motobu. O pai do trio,
Chosin Aji Motobu, era descendente do sexto filho do rei de Okinawa, Sho Shitsu
(1629-1668).
Para conter o temperamento explosivo de Choki Motobu foi convocado o mestre Anko Itosu (1832/1916) para lhe ensinar To De. Mas quando Choki testava seu aprendizado com seu irmão mais velho Choyu, sempre saía perdendo. Insatisfeito com as aulas de Itosu, Choki foi atrás de outros mestres da cidade de Shuri. Um deles foi o lendário Sokon Matsumura (1809/1901). Choki Motobu também recebeu ensino de Kosaku Matsumora (1829/1898) da cidade de Tomari e de Sakuma Pechin.
Choki Motobu passou por em prática o que aprendia no Distrito da Luz
Vermelha em Tsuji, onde na maioria das vezes não se dava bem ao enfrentar
marginais mais experientes que lutavam sem regras. Mas com o tempo sua
experiência como lutador de rua o fez progredir de forma impressionante.
Conta-se que a partir dos 20 anos de idade, Choki Motobu nunca mais perdeu uma
luta. Choki Motobu ficou conhecido como "Motobu Saru" ou "o
homem macaco" devido a sua força e agilidade.
Sem perspectivas de ganhar a vida de forma independente em Okinawa,
Choki Motobu partiu para a cidade de Osaka, no Japão, no início da década de
1920. Lá montou um dojô, mas não conseguia manter um número suficientes de
alunos para o seu sustento. A razão disso era que seu "material"
didático absorvido de seus mestres era limitado, já que ele se dedicava
principalmente ao combate real e menosprezava de certa forma as formas ou
katas, ou as lutas combinadas ou Kihon que lhe foi passado.
O povo japonês nutria muito preconceito contra os imigrantes de Okinawa
e Choki Motobu além de carregar um forte sotaque e ter uma aparência
carrancuda, tinha dificuldades de transmitir seus conhecimentos e de se
comunicar, além de ser muito ríspido e de poucas amizades.
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Em comparação aos mestres de Okinawa, Kenwa Mabuni e principalmente
Gichin Funakoshi, ele era considerado de má formação, apesar de ser descendente
de uma família real.
Choki Motobu não se tornou lendário por sua educação, qualidades
técnicas ou didática para o ensino, mas principalmente pela sua força física e
apreço pelo combate real. Essa era a diferença entre ele e os demais mestres
contemporâneos de Okinawa. Enquanto a maioria dos mestres se inclinavam para o
ensino e à transmissão correta da aplicação das técnicas de To De, ainda que em
grande parte letais e eficientes, Choki Motobu partia para o combate real e até
negligenciava o ensino formal e sistemático.
Com todas essas dificuldades no Japão, Choki Motobu considerava retornar
à ilha de Okinawa até que surgiu uma oportunidade.
Choki Motobu versus Jaan Kentel. |
O confronto com o Boxeador Europeu - Um dos confrontos que selou para sempre o nome de Choki Motobu na história do que hoje conhecemos como Karate japonês, foi contra um alto e forte pugilista europeu.
Eis aqui o relato da luta contra o boxeador estrangeiro, segundo
depoimento do próprio Choki Motobu:
"Fui assistir a uma evento de luta com um boxeador estrangeiro, um
tal de John "qualquer coisa", em Kyoto."
O boxeador a quem Motobu se referiu era o jovem Jaan (John) Kentel, vindo da Estônia. Jaan Kentel era da categoria pesos pesados e media 1,82m de altura.
Jaan Kentel, direto da Estônia. |
Prossegue, Motobu, que media 1,65m de altura e já estava com 52 anos de idade:
"O boxeador tinha lutado com um judoka na primeira Luta. O achei
demasiado lento e parecia um amador. Candidatei-me a enfrentar o pugilista e
apostar dinheiro (em mim mesmo) nesta luta. Eu já tinha mais de cinquenta anos
na época."
" Não tive oportunidade de lutar neste dia, mas voltei no dia
seguinte para insistir. Quando disse ao juiz de ringue que lutaria sem luvas, o
boxeador parecia me desprezar, já que era muito mais alto que eu."
Algumas versões dessa história relatam que Motobu queria lutar com as
vestes que usava normalmente, mas foi exigido que ele usasse um judô-gi (kimono
branco). De qualquer forma, o grande público e os promotores não o conheciam e
sua aparência não impressionava, já que passava dos 50 anos e ostentava uma
barriguinha saliente, além de ser de estatura baixa.
Prossegue, Motobu: " No primeiro round ele brincou comigo como se
eu fosse uma criança, tentando segurar meu nariz e torcer minha bochecha. Mas
não lutei a sério no primeiro round. Houve o intervalo e voltamos para o
segundo assalto. Logo pensei que se eu fosse derrotado por um boxeador
estrangeiro, envergonharia o karate de Okinawa e decidi vencer meu oponente
duma vez."
"E assim que o boxeador avançou para o ataque com todo ímpeto,
acertei sua têmpora fortemente com um soco. Ali mesmo ele caiu
desmaiado. Todos os espectadores ficaram muito animados e houve uma
salva de palma estrondosa enquanto jogavam suas almofadas de chão, piteiras,
porta moedas com cordão e outros objetos em minha direção."
"Foi um evento bastante emocionante, porque o boxeador tinha cerca
de 1,82m de altura e foi nocauteado com uma técnica de Karatê. Artigos de
jornais locais afirmaram que eu acertei o boxeador com a mão
espalmada ou aberta. No entanto, não usei a palma da minha mão para atingi-lo,
mas o meu punho. Os espectadores não perceberam porque bati muito rápido."
"A essência do Karate é mover-se de forma suave e, em seguida,
acertar o inimigo de forma rápida e explosiva quando surgir a oportunidade.
Isso é 'karate jissen', ou luta real."
Essa luta entre Choki Motobu e o boxeador da Estônia teria ocorrido em
novembro de 1922, em outras fontes citam a data de 1923.
A Rivalidade e a Luta com Gichin Funkoshi - A vitória de Choki
Motobu sobre o pugilista europeu repercutiu positivamente por todo Japão.
Entretanto saíram artigos nos jornais de Tokyo retratando o fundador do estilo
"Shotokan" de Karate, Gichin Funakoshi, como o vencedor do famoso
confronto ocorrido em Kyoto.
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Gichin Funakoshi, hoje reconhecido como o "Pai do Karate Moderno", era na ocasião um dos principais mestres introdutores do "Karate" originário de Okinawa no Japão e, certamente, o preferido das autoridades governamentais japonesas e autoridades reguladoras das artes marciais e educação como o fundador do Judô, Jigoro Kano, que prezavam sua postura e formação, como também sua evidente capacidade de promover e moldar o "To De" de Okinawa para uma "autêntica" arte marcial japonesa. Assim, viram uma grande oportunidade de promover ainda mais o estilo que viria a ser chamado de escola "Shotokan" por Funakoshi, ainda que roubassem o mérito da grande vitória de Choki Motobu.
Quando Choki Motobu ficou sabendo das "novidades", ele não
pensou duas vezes em partir para Tokyo e tomar satisfações com Gichin Funakoshi
que por sua vez não fez, aparentemente, nenhuma questão de esclarecer o engano
dos jornais.
Segundo Choki Motobu relatou posteriormente, ele nunca tinha ouvido
falar de Gichin Funakoshi em Okinawa. Mas o que importava era que Funakoshi
estava obtendo sucesso com a divulgação do "seu" karate, apesar de
nunca ter sido respeitado como um lutador real como Motubu e isso o deixava
irado.
Motobu ironizava comparando o Karate de Funakoshi como um Shamisen, um violão japonês de 3 cordas, "que fazia um belo som mas que era vazio por dentro".
Dizem que o outro motivo que também deixava Motobu irritado era que
Funakoshi estava abaixo duas categorias da hierarquia social de Okinawa em
relação a sua e, assim, ele decidiu colocá-lo de vez em seu devido lugar.
Conta-se que Choki Motobu (52 anos) adentrou-se no dojô de Gichin
Funakoshi (54 anos) em Tokyo e, de cara, o desafiou para um teste de
habilidades ou Kake-Damashi. Assim os dois rivais cruzaram as mãos como mandava
a tradição.
Decidido não socar Funakoshi em seu próprio dojô, Motobu rapidamente
torceu o pulso de seu oponente e o projetou ao chão (Técnica do Gotende?!?).
Surpreso, Funakoshi se levantou rapidamente e teria dito para recomeçarem. A
situação se repetiu por mais duas vezes para o constrangimento dos alunos do
humilhado Funakoshi.
Satisfeito, Choki Motobu se retirou do dojô de Gichin Funakoshi. Dizem
que posteriormente Funakoshi se avermelhava envergonhado em somente ouvir o
nome de Motobu, a quem ele passou a se referir como "o
analfabeto".
É sabido que a escola de Karate de Gichin Funakoshi era focada para o
desenvolvimento da saúde, do caráter e formação de cidadãos exemplares, não
visando necessariamente formar grandes lutadores.
Choki Motobu na verdade desprezava o ensino de Funakoshi e declarava
ficar satisfeito em apenas chutar a sua bunda durante o caminho de volta à
Okinawa, já que ele considerava o karate de Funakoshi infiel
ao "To De" verdadeiro e original de Okinawa.
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Mas esse sonho de Motobu nunca se concretizou, pois Funakoshi já tinha feito amizade com pessoas influentes na comunidade das Artes Marciais Japonesas e do governo, como o já citado mestre fundador do Judô e educador, Jigoro Kano.
Quando em certa ocasião Motobu soube que a Confederação Japonesa de
Artes Marciais teria concedido a Funakoshi o 5º Dan de faixa-preta (sistema de
graduação utilizado para as demais marciais japonesas), Motobu ironizou:
"Hahh, o que isso me torna? Um 10º ou 11º dan?!?
Motobu chegou a editar dois livros de sua arte com o apoio de seu filho
Chosei e alunos fiéis antes de regressar frustrado para Okinawa. Ele viveu um
pouco mais na sua terra natal antes de morrer, aos 74 anos, em 15 de abril de
1944.
O legado de Choki Motobu foi honrado por seu filho Chosei Motobu
(nascido em 1925) e Tatsuo Yamada (um dos seus principais alunos), que
"fundaram" o estilo Motobu-Ryu que reunia as principais técnicas
utilizadas por Choki Motubu em seu Karate peculiar. O nome oficial
do estilo é Nihon Denryu Heiho Motobu Kenpo.
Considerações Finais - Apesar de prático e muito
efetivo, o karate de Choki Motobu quase foi esquecido se não fosse pelos
ardorosos trabalhos de seu filho e alunos fiéis. Já o vistoso Karate Shotokan
de Gichin Funakoshi se tornou o mais popular dentre os diversos estilos
existentes até hoje. Em resumo, o karate de Funakoshi sempre foi baseado
nos Kata e Kihon, com o kumite ou luta sem o contato total e com os golpes
controlados.
O karate de Motobu era focado no contato total, baseado na realidade das
lutas de rua, com as técnicas de kata sempre direcionadas para a luta real. Mas
as formas estavam em segundo plano. E claramente o ponto decisivo que
culminou no sucesso de um e o fracasso do outro foi o fator político, o qual
Gichin Funakoshi soube utilizar muito bem.
Por Eumário J. Teixeira